Durante todo o mês, a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) abriu as portas para o Julho das Mulheres Negras, evento organizado pelo Ministério da Igualdade Racial (MIR), que promete refletir sobre a invisibilidade e dialogar com a gestão pública. A ideia é dar mais alguns passos na reconstrução da história da humanidade, de apagamento das pessoas negras, especialmente no mercado de trabalho.
A abertura foi realizada no dia 11 de julho , apenas como a primeira iniciativa de uma série de ações que começaram com o programa Formação de Iniciativas Antirracistas (Fiar): tecendo o caminho para a igualdade racial, lançado também pela parceria Enap e MIR, em maio deste ano.
“Gostaria de reforçar o compromisso da Enap com essa agenda de transformação governamental e agradecer ao MIR pela parceria constante, e cada vez maior. Dentro da jornada de julho das mulheres negras, a Enap vai sediar uma série de ações, e eu convido todas e todos a fazerem parte e estarem aqui conosco”, anunciou, na ocasião, a diretora executiva e presidenta substituta da Enap, Natália Teles da Mota.
Em uma mesa majoritariamente negra, representantes do MIR e da Enap aproveitaram a oportunidade, também, para exaltar as antepassadas logo na abertura e, a elas, dedicaram essa causa inédita e histórica. A coordenadora-geral de Capacitação de Altos Executivos da Escola, Magali Dantas, levantou, inclusive, dados de um passivo histórico de políticas públicas excludentes que afligiram essas mulheres no passado.
“A elas que nos antecederam e pelas que virão depois de nós é que importa celebrar, refletir e organizar a ação pública para mitigar o que o professor Mário Theodoro chama de ‘a sociedade desigual’, que é nutrida pela naturalização do racismo e das discriminações”, refletiu a coordenadora-geral.
Apesar de uma mudança de pensamento tardia e incompleta, segundo a secretária de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação do Racismo, do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Márcia Lima, é necessário celebrar os ganhos, avanços e dificuldades superadas ao longo do tempo, que, consequentemente, apontam as que ainda devem ser enfrentadas. "Celebrar este mês de julho é uma coisa muito nova na nossa história. Eu acho que essa parceria (Enap e MIR) vai transformar muito a gestão pública que temos hoje, a partir da perspectiva da diversidade, da interseccionalidade, e espero que essa agenda dentro da Enap e do governo federal tenha vindo para ficar”, sugeriu.
Também participaram da mesa de abertura nesse primeiro dia, representando o Ministério da Igualdade Racial, a secretária executiva, Adriana Marques, e a secretária de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Iêda Leal. “Uma das coisas mais importantes para o ministério é saber que estamos aqui e vocês conosco”, comemorou a secretária executiva.
Mais mulheres negras em posições de liderança na administração pública também contaram suas trajetórias, como a diretora de Avaliação, Monitoramento e Gestão da Informação (MIR), Tatiana Dias; a diretora de Provimento e Movimentação no Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), Maria Aparecida Chagas Ferreira; assessora internacional do MIR, Paula Cristina Pereira Gomes; a juíza-auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Karen Luise Vilanova, e a diretora de Promoção de Direitos da Secretaria de Acesso à Justiça, do Ministério da Justiça (MJ), Roseli Faria.
Dados sobre mulheres negras no serviço público
Dos 555 mil servidores públicos federais, 45% são mulheres e, deste total, 17% (94 mil) são mulheres negras. Os dados do Observatório de Pessoal do ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) foram apresentados na segunda parte do evento de abertura, durante a tarde de terça-feira (11/07), pela diretora de políticas e ações afirmativas do ministério da Igualdade Racial, Anna Venturini, e por Miriam Bittencour, gestora do Observatório de Pessoal e painel estatístico do MGI.
A análise desses números também revelou crescimento lento no número de servidores e servidoras negras no executivo federal nos últimos 10 anos (2013-2023) apesar da Lei de Cotas (12.990/2014). O percentual de mulheres negras era de 15,8%, em 2013, e 17% em 2023 e de homens negros passou de 21.2% para 22.8% no mesmo período.
A diretora do MIR mostrou que esses números revelam problemas na implementação da lei como a dificuldade na implementação de bancas de heteroidentificação e no processo de autodeclaração, conforme revelou pesquisa da Enap sobre o tema. O levantamento foi realizado pela Diretoria de Altos Estudos da Escola e está contribuindo para a construção de um novo texto legislativo para suprir o atual cuja vigência expira no próximo ano.
“Outro fator que tem impacto são os concursos para universidades que eram dispersos e a lei só se aplica para processos seletivos a partir de três vagas ou mais e a falta de concursos públicos nos últimos 10 anos. É importante entender esse cenário para que tenhamos uma nova lei de cotas que suprima esses gargalos e que tenha um recorte de gênero”, explicou Miriam Bittencour do MGI.
Durante o painel, foram apresentados números que demonstram redução de 8% no número geral de servidores públicos que têm como causas: a falta de concursos públicos para repor servidores aposentados, a terceirização, a extinção de cargos e profissões obsoletos, as estratégias de transformação digital para a substituição da força de trabalho.
A representante do MGI contou sobre o trabalho de atualização cadastral realizado pela pasta que serve para aumentar evidências de qualidade para equalizar as políticas públicas relacionadas a gênero e raça e transformar a realidade. “De janeiro a junho deste ano constatamos movimento para aumento dos servidores que se autodeclaram negros. Foram 33,4 mil reclassificações de raça/etnia e houve um aumento de 10% do total de pessoas que se reclassificaram como negras”.
Liderança
Em relação a cargos de liderança ocupados por pessoas negras, o painel revelou crescimento absoluto de 28,4% de mulheres negras em posição de gestão, de 3.759 em 2013 para 4.827 em 2023. Há 10 anos, eram 6.383 homens negros em funções de comando e 7.838 até junho deste ano, o que reprensenta um aumento de 22,8%.
As participantes lembraram que a expectativa é aumentar a quantidade de pessoas negras nesses postos após a publicação do decreto 11.443/2023 que prevê reserva mínima de 30% das vagas.
Durante a exposição, outra informação interessante foi o resultado do LideraGov, programa de formação para quem ainda não ocupa cargos de liderança, que preparou 138 novos profissionais para assumirem os desafios de liderança do governo federal. Deste total, 48 servidores são negros e 21 são mulheres negras.
Anna Venturini, do MIR, disse que está em preparação uma edição do LideraGov para pessoas negras a fim de acelerar a inserção deste segmento em cargos de chefia.
Ciência e empreendedorismo
A segunda parte da programação seguiu com o debate sobre “mulheres negras e inovação: ciência e empreendedorismo” com a mediação da coordenadora-geral de políticas afirmativas do MIR, Natália Neris.
Participaram da mesa redonda a biomédica e pesquisadora Jaqueline Góes, que participou do sequenciamento genético do coronavírus, a diretora de equidade do Ifood, Angel Vasconcelos, da empreendedora social e CEO da plataforma PretaHub, Adriana Barbosa e da cientista da computação e fundadora do Instituto Da Hora, Nina da Hora.
Cada participante compartilhou o trabalho que desenvolvem e os desafios pessoais e profissionais que enfrentam como mulheres negras. “Tenho sonhos sociais muito fortes e precisava fazer isso todos os dias. E sempre sonhei em ter uma líder mulher negra. Quando esse sonho se realizou eu curei uma certa solidão de não ver mulheres como eu em cargos de liderança. Ainda somos poucas, mas temos de resistir olhando para os exemplos e o futuro”, ressaltou a diretora de equidade do Ifood, Angel Vasconcelos.