Com “casa cheia” o Fronteiras e Tendências da Enap trouxe em outubro Ricardo Nuckel, professor, consultor e especialista em negociação e resolução de conflitos no setor público e privado.
Ele abriu logo sua palestra com uma pergunta: “ - Qual o percentual de decisões que você toma sem depender de ninguém desde a hora que acorda até a hora de acionar o despertador quando vai dormir? A resposta habitual é 20%, dependendo se tem filhos, cachorro, coelho. No campo profissional, é altíssimo o tempo que os gerentes passam sem poder para tomar decisões individuais. 70% do tempo dos executivos é destinado a resolver conflitos, com base em estudos feitos já há 20 ou 30 anos atrás, quando ainda não estávamos na dinâmica das organizações transversais como estamos hoje”, disse Nuckel. Esta constatação indica a importância de fugir das quatro armadilhas que impactam na resolução de conflitos.
A negociação permite equilíbrio da compreensão mútua
A primeira armadilha da negociação é considerar que não estamos em uma situação de negociação. Como ferramenta para avaliar o perímetro da negociação, Nuckel trouxe o conceito das quatro alavancas, sem as quais o sistema não funciona: poder, regras, negociação e dádiva.
O poder é necessário e se justifica porque alguém precisa ser responsabilizado pela tomada de decisões. Quando não se responsabiliza, o poder perde legitimidade. “Em negociação precisamos ter clareza de quem terá a responsabilidade pelas decisões tomadas. Claro que se você somente usar o poder, vai gerar resistência do outro lado e você perderá adesão, engajamento e influência”, pontuou
Como é necessário um quadro de previsibilidade e segurança na tomada de decisões, porque “tudo não é negociável”, você precisa de um conjunto de regras para dar segurança e reduzir custo de transações de negociações internas e não poderíamos ficar em estado de negociação permanente. Em contraponto, se você somente utilizar as regras, vai paralisar a organização. “Temos que perceber em que momento estamos”.
A negociação consiste em buscar uma decisão conjunta para especificar as condições de uma troca ou superar um desacordo. Negociação exige corresponsabilidade, os dois somos responsáveis pelo resultado do que foi decidido. “Temos que lembrar que o outro vai ter jeitos, valores e prioridades diferentes, aí vou ter que influenciá-lo para que se interesse ou me dê algo que preciso”, alerta o palestrante.
A dádiva é uma dinâmica invisível que faz as organizações e famílias funcionarem. “A dádiva é essencial, porque não podemos negociar tudo. Implica em uma dívida recíproca. Nem toda concessão pede uma contraconcessão. A importância da dádiva é que ela guarda equilíbrio positivo, é o que o antropólogo chama de dívida recíproca mútua positiva. Dou e recebo, dou e recebo, sem antever um benefício futuro e guardo essa reciprocidade que me dá satisfação. Se tenho percepção de que dou mais do que recebo na equipe e com colegas de trabalho, ou nos sacrifícios que tenho que fazer pela minha família, tenho a sensação de desequilíbrio, é quando aparecem os conflitos. Neste momento tenho que sair da dinâmica da dádiva, porque é a negociação que vai permitir encontrar novamente o equilíbrio na compreensão mútua”.
Em resumo, as alavancas indicam que sem poder o sistema não funciona, porque alguém precisa ter a responsabilidade da decisão; sem regras, os custos de transação seriam muito altos; sem negociação não conseguimos corresponsabilidade e sem dádiva não conseguiríamos ter organizações flexíveis onde as pessoas se sentem bem e conectadas.
As quatro armadilhas da negociação
“Precisamos refletir a maneira de exercer o poder, quais são as regras e normas que estabelecemos, qual o jeito de resolver o problema, como negociamos e qual a natureza dos vínculos que criamos para manter as relações importantes. A segunda armadilha é ter consciência de que nem tudo é negociação e que não estamos jogando o mesmo jogo. Como vamos gerenciar a responsabilidade do resultado final”. Nuckel destaca que é preciso diferenciar consultação, informação e negociação. Quando tais elementos ficam claros, já muda o sistema de negociações.
Negociação, segundo a raiz latina da palavra, significa “negar o ócio”: é não estar em lazer, é estar ativo, em permanente atividade para buscar decisão conjunta para resolver um problema ou superar um desacordo, otimizar um potencial entre as pessoas. Nuckel alerta que “o outro vai ter jeitos e valores diferentes, prioridades diferentes, aí vou ter que influenciar o outro lado para ele se interessar ou me dar algo que preciso”. A terceira armadilha é: não esquecer como influenciamos. Influenciar é ganhar o outro através da sua livre atenção ao meu projeto, às minhas ideias. Preciso mostrar ao outro valor da minha proposta. Ricardo Nuckel afirma que "hoje em dia as pessoas não querem mais um sentido único pela força e pela regra. Quanto mais utilizo a força e a regra, mais perco engajamento, influência, energia e vontade das pessoas contribuírem”, alerta.
A terceira armadilha é a influência. “Influenciar é ganhar o acordo do outro através de sua livre atenção ao meu projeto. É mostrar ao outro o valor da minha proposta, no empreendimento que estamos fazendo juntos. Há barreiras para a escuta sincera, porque o medo da escuta é que possamos ser influenciados em nossas convicções”. A armadilha, alerta o palestrante, é esquecer que podemos influenciar o outro da mesma maneira que podemos ser influenciados. “Pessoas que nos levam em conta, que constroem uma relação conosco e que nos ajudam a entender melhor nossas prioridades podem nos influenciar mais. Não esqueçamos a reciprocidade na dinâmica da influência”.
Aprenda com a criatividade das crianças
Atitudes essenciais úteis e mais eficazes na influência e negociação estão no campo da quarta armadilha. Para Nuckel, atitudes estão em três domínios: "as pessoas, ou seja, quem somos uns para os outros, o que significa ser um parceiro, um bom colega, bom pai, bom irmão. São vínculos que não discutimos. Cada um tem expectativas diferentes. E quais são nossas regras? como achamos certo funcionar uns com os outros? Negociar é uma construção social identitária. Cada coisa se negocia em seu aspecto. Se não tenho confiança no outro, primeiro tenho que conversar sobre confiança", alerta. Ele lembra que "as crianças, por exemplo, quando chegam porque querem algo, vêm agradáveis e comunicativas. Depois são persistentes e às vezes cedemos, para ter aquele tempo para nossos assuntos no final do dia. Crianças são curiosas e criativas com o problema, elas têm muitos porquês e tentarão encontrar uma solução que seja aceitável para nós, integrando nossas preocupações." Na negociação, quando estamos na frustração, começamos a misturar as pessoas com os problemas, o que torna difícil encontrar uma solução. A primeira atitude é separar a pessoa do problema, clarificar as regras e depois achar uma solução. É preciso não ir atrás da bola, mas do jogador. Ao confundir o jogador com a bola, o jogo não dará certo. O essencial é ter uma relação funcional que me permita solucionar problemas com o outro. Esse é o objetivo da negociação.
A negociação envolve capacidades e competências: ela é arte e ciência, demanda habilidades, certos conhecimentos, o saber usar determinadas ferramentas e técnicas. É uma teoria que se nutre de muitas outras ciências. Colocar a negociação em ação se alguém está me agredindo é ainda mais difícil. A boa notícia é que a negociação pode ser desenvolvida e reforçada a cada instante e ter um alto retorno no trabalho, na família. Devo construir sobre minhas forças: se já sou assertivo, posso melhorar minha capacidade de escuta. O papel do líder é estabelecer relações, dar sentido, administrar o poder que tem de acordo com as regras estabelecidas. A ideia é promover a aprendizagem para melhorar a reflexão como líder e como negociador. Crianças são um ótimo terreno para treinarmos.
Síntese das armadilhas na negociação
- Muitas situações são de negociação e não as consideramos como tal
- Nem todas as situações são de negociação, muitas vezes elas precisam da responsabilidade do poder, das regras e da dádiva
- Para influenciar, tenho que lembrar de como eu gosto de ser influenciado
- Lembrar-se das crianças e separar as pessoas do problema. Curiosidade e criatividade têm papel importante nas negociações.
Conhecer o outro lado é importante
Durante o debate com os participantes do FronTend, Nuckel afirmou que no imaginário comum o bom negociador é duro e inflexível. “Quando você tem situações duras, mande alguém que seja flexível para se conectar com o outro lado. A negociação comporta muitos elementos, como ter habilidades analíticas, conhecer quais são os interesses importantes para o outro, capacidade de diagnóstico, de comunicação/escuta/persuasão. Avalie o contexto: a pessoa está alinhada comigo ou é alguém que não confia na organização que represento? Lembre-se que não somos treinados a nos entender uns aos outros, é algo que não aprendemos nas escolas, nos últimos tempos [aprendemos] um pouco mais com a introdução da inteligência emocional. Relacionar-se é uma competência essencial que pode ser aprendida ao longo da vida”, estimula.
O que muda na negociação em tempos de distanciamento social
A começar pela esfera doméstica, tudo foi mexido com o distanciamento social. Nuckel exemplificou que “na esfera profissional não encontramos mais as pessoas no corredor, não temos mais o momento do cafezinho. O stress na carga mental da pessoa está diferente. Então, como posso negociar e estabilizar uma situação? Tem também a questão da confidencialidade nos canais digitais”. Por outro lado, há vantagens no distanciamento social que podem ser exploradas, segundo Nuckel. “Podemos compartilhar telas, trabalhar com mapas mentais, sequenciar em pequenas partes uma negociação de uma forma diferente do ponto de vista logístico. Como podemos conseguir outros jeitos de nos conectar? Uma conversa virtual prévia para conhecermos alguém com quem nos encontraremos depois pode criar conexões prévias e se constituir em benefício, pois no momento da negociação já teremos saído do papel de representação”.
Conflitos entre colegas no ambiente de trabalho necessitam de intermediação
Existem os conflitos chamados “frios”, latentes, não explicitados e que muitas vezes prejudicam o ambiente organizacional. Nuckel alerta que “no caso de um vínculo que não é agradável, o paradoxo é que só posso sair do conflito através da pessoa que está em conflito comigo. Primeiro é necessário reconhecer que existe uma situação difícil de resolver. Depois, avaliar quem vai intervir na situação: um colega, um chefe? quem pode ter influência para acompanhar as pessoas nesta conversa, fazendo um papel até de intermediação”? A organização pode ter estabelecido um sistema interno de gestão para ajudar os chefes a intermediar esse tipo de situação. Há situações com consequências graves que exigem outras medidas, além da negociação.
Negociação tem aspectos culturais próprios do Brasil
Cultura está relacionada ao jeito que resolvemos nossos problemas. Diferentes profissionais têm diferentes maneiras, o lado nacional, um baiano e um gaúcho, um paulistano e um carioca, são parâmetros. Me surpreendeu o fato de os brasileiros não gostarem de falar não. Desafortunadamente, temos que dizer as coisas, encontrar um jeito de colocar o assunto sobre a mesa. Devemos tomar consciência que, queiramos ou não, estamos em negociação. “Construam sobre suas forças, complementem os pontos de progressão. Desenvolvam a assertividade e busquem a perpétua melhoração...conosco e com os outros”, finaliza Nuckel.