A inclusão racial na administração pública federal continua um dos principais desafios da transformação do Estado, conforme apontam os dados recentes. E avaliar a presença negra na Administração Pública Federal requer cuidado quando tratamos de grandes números.
Embora o percentual de servidores negros no serviço público civil federal tenha alcançado 40,2% em 2023 (Boletim de Pessoa, MGI), esse número ainda é inferior aos 56% da população negra estimada pelo Censo 2022 do IBGE .
Apesar de ainda longe do percentual de pessoas negras na população (IBGE, 2022), o número de 40% não passa uma impressão de tanta desigualdade racial no serviço público federal.
Contudo, se analisarmos um pouco mais detidamente esses números, podemos verificar um verdadeiro funil racial entre as carreiras públicas com a baixa presença de pessoas negras em cargos e carreiras estratégicas.
Por exemplo, descendo um primeiro nível no funil e selecionando apenas os servidores públicos que são estatutários e ingressaram na administração por concurso público, em dados atualizados de 2024, o número de 40% decresce para 37%.
Se descermos mais um degrau e selecionarmos apenas os servidores estatutários, que ingressaram por concurso público e estão em carreira de ensino superior, o número cai para 32,2%.
Já podemos notar aqui, portanto, que a distância para os 56% do IBGE aumentou.
Se a lançarmos um olhar mais profundo sobre as carreiras do “Ciclo de Gestão”1, que são carreiras mais privilegiadas em termos de posição e remuneração2, observaremos a presença de pessoas negras cair drasticamente.
Como é possível observar no gráfico abaixo, o percentual de pessoas negras nessas carreiras é menor do que a média geral do serviço público.
Na carreira de técnico de planejamento e pesquisa do IPEA, o percentual chega a 19%, menos que a metade do total de negros na administração pública federal.
A carreira de Auditor de Finanças e Controle é a que desempenha melhor, mas ainda assim tem 7 pontos percentuais a menos do que o total de negros concursados da administração pública federal.
Fonte: Dados do SIAPE (junho de 2024) acessados via Ambiente Remoto de Pesquisa da Enap.
Em síntese, ao olharmos para a presença de pessoas negras em carreiras com maior salário e prestígio social, observamos que a administração pública federal ainda reproduz uma forte desigualdade racial.
Em relação à presença de pessoas negras em cargos comissionados, observamos também um fenômeno semelhante, qual seja: quanto maior o cargo (aqueles com maior poder remuneratório e poder de decisão), menor a presença de negros, conforme o gráfico abaixo revela:
Fonte: Dados do SIAPE (junho de 2024) acessados via Ambiente Remoto de Pesquisa da Enap.
Ao olharmos especificamente para os cargos a partir no nível 13, considerados gerenciais no âmbito da administração pública federal, a participação de pessoas negras reduz consideravelmente, reforçando o viés de desigualdade racial do serviço civil federal brasileiro.
No que diz respeito ao nível de escolaridade das pessoas negras dentro do setor público federal, observamos que a maior parte possui nível médio, conforme gráfico abaixo:
Fonte: Dados do SIAPE (junho de 2024) acessados via Ambiente Remoto de Pesquisa da Enap.
Essa menor escolaridade pode ser resultado da desigualdade estrutural de acesso à educação superior por parte de pessoas negras no Brasil, reverberando no acesso aos cargos/carreiras públicas que não exigem nível superior -e, por conseguinte, menor remuneração, poder de decisão e autonomia -, reforçando também o viés de desigualdade racial do serviço civil federal brasileiro.
Já ao analisarmos o perfil remuneratório das pessoas negras, o gráfico abaixo revela uma forte disparidade racial nas faixas salariais. Ele também possui um formato de funil invertido, pois a presença de servidores negros é maior nas faixas de salários mais baixas e diminui conforme o salário aumenta:
Fonte: Dados do SIAPE (junho de 2024) acessados via Ambiente Remoto de Pesquisa da Enap.
Ao olharmos para as faixas salarias mais baixas (de R$ 3.000 a R$ 6.000), os servidores negros representam 47,3%, e a partir de 15 mil a presença desses passa a reduzir consideravelmente. Essa concentração nas faixas salariais mais baixas indica que a maioria dos servidores negros está em cargos com remunerações menores, o que pode estar relacionado ao predomínio de funções de nível médio ou auxiliares ocupados por negros. Esses dados mostram, portanto, que a maior parte da renda do serviço civil federal brasileiro é capturada por pessoas brancas.
Considerações finais
Os desafios de inclusão de pessoas negras no setor público federal brasileiro exigem uma ação contínua e estruturada, contemplando a transformação das práticas organizacionais, culturais e educacionais dentro das instituições e a maior presença de pessoas negras nas organizações. A implementação de medidas efetivas de inclusão, somada ao combate ao racismo estrutural, pode propiciar um ambiente de trabalho mais justo, plural e capaz de refletir a verdadeira composição da sociedade brasileira, garantindo que todas as vozes sejam ouvidas e valorizadas nas tomadas de decisão.
Nesse sentido, entendemos que alguns esforços realizados pelo governo federal – como, por exemplo, o estabelecimento de percentual mínimo de 30% dos cargos em comissão e funções de confiança devem ser preenchidos por pessoas negras3, e o empenho para a renovação da Política de Cotas para a Administração Pública Federal4 –são importantes, porém carecem de um olhar diferenciado para as posições de maior prestígio social e poder de decisão. Ao estabelecer uma meta global para as pessoas negras, e não diferenciar os cargos5 e carreiras mais privilegiados, as ações Estatais pela inclusão perigam perpetuar os funis apresentados nesse texto. Entendemos que os dados acima apresentados contribuem para reflexão acerca dos padrões de desigualdade do setor público federal. Se, de fato, desejamos ter um Estado Brasileiro que possa ter o importante papel na redução das imensas –e históricas -desigualdades sociais brasileiras, parece-nos que, de partida, devemos questionar se esse Estado também não tem colaborado para (re)produção dessa desigualdade.
É imprescindível que a diversidade racial seja vista não apenas como uma questão de representação, mas como um componente fundamental para a construção de uma administração pública mais equitativa e eficiente. O mês de novembro, conhecido como o mês da consciência negra, não pode ser o único o momento para refletirmos – e lutarmos – na promoção da igualdade racial brasileira. Sejamos vigilantes.
* Coordenador-Geral de Ciência de Dados da Diretoria de Altos Estudos da Enap.
** Coordenador-Geral de Pesquisa da Diretoria de Altos Estudos da Enap.
A opinião dos autores nesse texto não representa necessariamente a posição da instituição na qual atuam.
1- Apesar de não haver definição legal para distinguir carreira entre Ciclo de Gestão e as demais, esse nome fantasia é usado pelos membros dessas carreiras em diversas discursões sobre o serviço público federal brasileiro. Compõem o grupo as carreiras de: Auditor Fiscal de Finanças e Controle; Especialista em Política Pública e Gestão Governamental; Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA; Analista de Infraestrutura; Analista de Comércio Exterior; Analista de Planejamento e Orçamento.
2- Excluindo os analistas de infraestrutura, os 25% dos servidores com menor remuneração das demais carreiras, ganham em torno de R$29.000 mensais.
3- Decreto nº 11.443, de 21 de março de 2023.
4- O novo PL 5384/2020 aumenta de 20 para 30% as vagas destinadas a pessoas negras nos concursos públicos federais, incluindo também quilombolas e indígenas.
5- O Decreto nº 11.443 estabelece 30% para dois grupos de cargos comissionados, de 1 a 12 e de 13 a 17.