Dando continuidade à programação do Ciclo Mutações, a Enap recebe na próxima semana - 11, 12 e 14 de junho

- os últimos três encontros do ciclo. As atividades estão marcadas para às 18h30, com entrada franca.

Além dos velhos problemas que nascem ao mesmo tempo com as noções e as formas originárias da própria democracia – problemas como as ideias de representação política, o teológico-político, o chamado poder popular, as formas jurídico-políticas, a própria ideia de república etc. – é importante pôr em discussão também as novas questões trazidas à política pelas invenções técnicas e científicas. Concebido por Adauto Novaes, as palestras debatem temas mais urgentes que envolvem as relações entre democracia e política na era das grandes mutações produzidas pela tecnociência.

As vagas são limitadas. Inscrições no local.

Confira a programação:

Segunda-feira | 11 de junho - Fim da história compartilhada, desamparo na ausência de mundo, com Olgária Matos

Olgária Matos, doutora pela USP e pela École des Hautes Études, é professora titular dos departamentos de filosofia da USP e da Unifesp. Escreveu Rousseau: uma arqueologia da desigualdade, Os arcanos do inteiramente outro – a Escola de Frankfurt, a melancolia, a revolução, A Escola de Frankfurt – sombras e luzes do Iluminismo e Discretas esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo. Colaborou na edição brasileira de Passagens, de Walter Benjamin, e prefaciou Aufklârung na Metrópole – Paris e a Via Láctea. Participou das seguintes coletâneas: Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo, Mutações: a experiência do pensamento, Mutações: elogio à preguiça (ganhador do Prêmio Jabuti em 2013), Mutações: o futuro não é mais o que era e Mutações: entre dois mundos. 

Sinopse

Para analisar a modernidade, Walter Benjamin a caracteriza pelo predomínio da técnica e do fetichismo em suas relações com a sociedade e as guerras, entrevendo os desastres que uma civilização industrial em crise pode causar. Referindo-se a Eduard Fuchs, escreve: "Ele só podia ver na evolução da técnica o progresso das ciências naturais e não as regressões da sociedade […]. As energias que a técnica desenvolve para além deste limite são destrutivas. Colocam na linha de frente a técnica da guerra e sua preparação pela imprensa." Para Benjamin, a crise perde seu caráter transitório e superável, cedendo a um conceito de crise como condição permanente. Hannah Arendt, por sua vez, anota: "De agora em diante, a morada da alma só pode ser construída com firmeza na sólida fundação do mais completo desespero." A esta mortificação, Hannah Arendt denominou "acosmismo" (worldlessness), ausência de mundo, ao se referir a uma figura inédita da alienação que é perda do mundo comum, resultado da pleonexia da ciência e da técnica que, depois de 1945 e da bomba atômica, são capazes de destruição de todas as formas de vida. Mundo sem referências estáveis e estabilizadoras, ele evoca as consequências dramáticas para a ciência da ruptura com a tradição; e, na vida política, as antigas formas de pertencimento a uma comunidade de destino se retraíram com a dissolução de uma história compartilhada, resultando em particularismos identitários. Modernidade em crise de filiação, as figuras de Édipo, Telêmaco e Hamlet constituem seu medium de reflexão.

Terça-feira | 12 de junho Desobediência política: o enigma da primeira pessoa, com Frédéric Gros

Frédéric Gros é professor da Universidade Paris-Est Créteil (Upec) e editor dos últimos cursos de Michel Foucault no Collège de France. É autor de livros sobre a história da psiquiatria e filosofia penal. Estabeleceu, com Arnold Davidson, uma antologia de textos de Foucault, intitulada Philosophie. Escreveu Caminhar, uma filosofia, États de violence – Essai sur la fin de la guerre, Désobéir e Possédées (romance).

Sinopse

Se a desobediência representa o grande impensado do pensamento político, é porque a filosofia se contentou essencialmente em estabelecer os princípios racionais e abstratos de nossa obediência. Mas por muito tempo ela se recusou a colocar a questão essencial: por que obedecemos? Ora, é da resposta a essa questão que depende uma verdadeira reflexão sobre a desobediência política. É nossa obediência o resultado de uma relação de forças, de uma violência armada, de uma coerção econômica (modelo da submissão)? Ou é a expressão de um reconhecimento de inferioridade frente a uma autoridade legítima (modelo da subordinação)? Ou ainda: trata-se de um simples alinhamento passivo segundo o comportamento dos outros (obedeço porque todo mundo obedece, para ser "como os outros": conformismo)? Esses três modelos se inscrevem em paradigmas pré-políticos (paradigmas econômico, parental, social). Eles deixam entrever estilos diferenciados de desobediência: a rebelião, o direito de resistência, a transgressão.
A simples diversificação dos estilos de obediência permite já ultrapassar a evidência demasiado consensual da submissão. De fato, convém avaliar a força e a fragilidade indissociáveis da ideia de que toda obediência é o resultado de uma violência primeira. A força desse modelo está em sua capacidade de desmistificação. Pode-se, por exemplo, estabelecer que a obediência de gratidão nunca é senão a interiorização resignada de uma relação de forças (violência simbólica). Mas, por outro lado, considerar que toda obediência é necessariamente o produto de uma coerção exterior é esquecer uma parte de sombra na relação política, essa parte de sombra que um autor como La Boétie revelou magnificamente. É possível, com efeito, que haja na obediência uma adesão de fascínio e como que uma relação de encantamento na raiz de nossa obediência.
Para pensar formas propriamente políticas de obediência é preciso voltar-se para dois outros conceitos: o consentimento e a obrigação. O consentimento é o grande conceito moderno da obediência política. Se aceitarmos deixar de lado suas formas totalitária ou de segurança pública, ele permite pensar uma sociedade de homens livres reunidos num projeto de viver-junto e dar um novo sentido às ações de "desobediência civil". Quanto à ideia de "obrigação", ela permite aprofundar o sentido da desobediência política e examinar suas condições transcendentais. Trata-se desta vez de pensar uma forma de obediência que seja o resultado de uma ordem a si mesmo: obedeço porque ordeno a mim mesmo obedecer (esse modelo agonístico pode ser construído a partir do livro III da Política de Aristóteles). Então obediência e desobediência formam uma dobra ético-política irredutível, "obedecer" e "desobedecer" podem ser colocados sob a injunção do cuidado de si e da responsabilidade política. Thoreau escreveu em seu Diário: "E se não sou eu, quem o será em meu lugar?" É assim que não posso pedir a ninguém para resistir em meu lugar. Ninguém pode me substituir quando se trata de revoltar-se. Desobedecemos sempre em primeira pessoa. É o mistério dessa primeira pessoa que nos propomos desdobrar, na medida em que ele contém o segredo das grandes lutas políticas.


Quinta-feira | 14 de junho - Despotismo democrático e des-civilização, com Marcelo Jasmin

Marcelo Jasmin é mestre e doutor em Ciência Política pelo Iuperj e professor da PUC-Rio, vai apresentar a conferência Marcelo Jasmin é historiador, mestre e doutor em Ciência Política pelo Iuperj. É professor da PUC-Rio, onde ensina Teoria da História, e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Iesp-Uerj, onde ensina Teoria Política e História do Pensamento Político. Escreveu os livros Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política, Racionalidade e história na teoria política, Modernas tradições: percursos da cultura ocidental (com Berenice Cavalcante, João Masao Kamita e Silvia Patuzzi) e História dos conceitos: debates e perspectivas (com João Feres Júnior).

Sinopse

No ano de 1840, Alexis de Tocqueville vislumbrava a possibilidade de a sociedade moderna, que então se formava na Europa e nos Estados Unidos, caracterizada por uma crescente igualdade de condições entre todos os seus habitantes, viesse a produzir uma aberração política. Imaginou um mundo em que todos adultos votassem periodicamente para eleger seus representantes, mas que estes últimos não os representassem de fato, observando antes os seus interesses próprios do que o bem-comum. Mas sendo eleitos, os governantes teriam a sua legitimidade garantida pelas urnas, quase que independentemente do que façam no governo. Dado que os cidadãos modernos têm pouco contato e interesse na coisa pública, até porque passam a maior parte de seu tempo dedicados ao trabalho da sobrevivência, as dificuldades com a elaboração e o acompanhamento das coisas políticas seriam crescentes e resultariam numa adesão, pouco refletida, a fórmulas gerais, em contexto de baixa experiência prática na resolução das coisas comuns. Se a cultura política da sociedade democrática representativa fosse a da apatia cívica ou a da progressiva alienação em relação à coisa pública, pensava o autor de A Democracia na América, estavam dadas as condições para uma forma inédita de opressão que ele chamou, sem deixar de estar atento à estranheza da formulação, de "despotismo democrático". Um despotismo "doce", "suave", pois não precisaria violar os corpos para afirmar o seu poder garantido pelos procedimentos de legitimação eleitoral. A construção conceitual de Tocqueville apontava para uma das alternativas possíveis na evolução tardia do mundo democrático moderno e parece que, pelo menos até recentemente, não encontrara na experiência a sua confirmação.
Em seu livro Os alemães, publicado postumamente em 1992, o sociólogo Norbert Elias buscou compreender como "a ascensão do nacional-socialismo e, por consequência, também a guerra, os campos de concentração e o desmembramento da Alemanha ante bellum em dois Estados" ocorreu naquele país em que o florescimento das artes, do pensamento e da cultura em geral havia alcançado as suas formas mais sofisticadas nos séculos anteriores. Observando o quadro mais abrangente das mazelas do século XX, Elias se pergunta se estaríamos assistindo ao "princípio do fim do movimento civilizador europeu" ou da "sua continuação num novo nível?". O exame desta questão, até aqui não resolvida, exigiria a distinção entre, por um lado, um "processo de rebarbarização", compreendido como uma reversão da tendência secular à civilidade, tal como proposta pelo autor em seu estudo clássico de 1939, O processo civilizador, e, por outro, a emergência, não necessariamente tendencial, de um ou outro "violento surto descivilizador". No primeiro caso, estaríamos assistindo ao fim histórico de um longo período civilizador, no segundo a episódios produzidos pela própria civilização, ou como reação a ela, mas desviantes de suas tendências continuadas de pacificação. Em ambos os casos, a suspensão ou dissolução dos mecanismos de autocontrole que teriam caracterizado a "profundamente arraigada transformação civilizadora da estrutura inteira da personalidade" estaria na origem da recente banalização da violência na vida social e contribuiria para a "informalização" das regras de conduta cujo desenvolvimento, entre os séculos XVI e XIX, teriam garantido uma convivência social tida como progressivamente satisfatória na vida europeia, antes de eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914.
Tocqueville morreu em 1859 e Norbert Elias nos deixou em 1990, mas as suas indagações continuam presentes, a exigir investigações. A sensação contemporânea, aguçada neste início de século XXI, parece sustentar que vivemos, de um lado, a continuidade dos tempos sombrios, marcados pela ameaça constante da guerra, da destruição, do terrorismo, do crescimento de desigualdades e conflitos e, de outro, da continuidade e da repetição mecânica da fórmula eleitoral representativa.